segunda-feira, junho 20, 2005

Vidas de Drogas & Drogas de Vidas

Noutro dia tive uma conversa interessante com um dos melhores amigos do RK que me deixou preocupado. Este amigo do RK, com o nome mais bonito do mundo, P. – não é por acaso que é igual ao meu! – ficou escandalizado (genuinamente escandalizado dada a reacção que teve… quase que berrou comigo!) quando respondi ao RK que tinha gostado dos amigos dele (que havia conhecido horas antes num jantar nas Docas) à excepção da «cena das drogas».

Estava a referir-me obviamente às conversas e descrições intermináveis sobre feitos “fantásticos” ao sabor da “moca” das “pastilhas”. Durante todo o tempo que o jantar durou ouvi (escandalizado) em silêncio as histórias passadas e recentes, de alguns dos amigos do RK, recheadas de festas, bebedeiras, drogas, extravagâncias e certos comportamentos que me mostraram que afinal o “sub-mundo GAY” de que se fala, mas que nunca tinha visto, existe mesmo, para muita pena minha. Com a explicação simplista e esfarrapada, mas infelizmente muito utilizada, de que com o álcool e as drogas se conseguem níveis mais elevados de diversão, felicidade momentânea ou somente gozar melhor a “noite”, os rapazes à minha frente justificavam o uso de substâncias muitas vezes ilícitas e perigosas. Além disso é impossível não reparar que, para estas pessoas, que se revêem num determinado meio social muito conotado com estes comportamentos, a utilização deste tipo de substâncias é extremamente “in”, “fashion”, socialmente aceitável e até estimulada pelos demais. O “estilo de vida” das noites seguidas de farra, no Kremlin ou no Lux, ao som da música aos berros e sob o efeito conjunto de quantidades industriais de álcool e doses de “pastilhas”, “riscos” ou “cheiros”, torna estas pessoas dependentes de estímulos cada vez mais fortes para “sentirem-se” – e, talvez, até na sua essência pensem que afinal “isto” é que é “viver”!

O P. ao verificar a minha crítica às drogas (nem sequer referi o álcool… porque se o tivesse feito acho que teríamos que levar o rapaz às urgências de um hospital de tão ofendido que teria ficado) reagiu daquela maneira: impulsiva, ofendida, rápida e cheia de uma falsa sensação de moralidade. Argumentou: “(…) já não és a primeira pessoa que eu oiço a dizer uma coisa dessas (…) não sei porque é que as pessoas têm tanto preconceito em relação às drogas e a quem as toma de livre vontade (…) ainda para mais pessoas que são gay e que sabem o que é o preconceito; e fazem exactamente a mesma coisa às outras pessoas (…) cada qual toma aquilo que entender e nós não temos nada que ver com isso (…)”. Face a este metralhar enraivecido e em turbilhão ciclónico de argumentos em todas as direcções contra a minha opinião pessoal (e dado que ele estava a dar-me boleia para casa e eu não queria ficar apeado no meio da segunda circular) disse simplesmente: “Sim, podem fazer o que quiserem, desde que não me chateiem.” – uma meia verdade, meia mentira. Obviamente não queria alimentar uma discussão que não teríamos tempo de desenvolver e para a qual nem saberia se ele seria aberto.

Calei-me depois disto, olhando para as casas, prédios e estradas de Lisboa iluminadas pela luz artificial já em plena noite, pensando para com os meus botões quais seriam as razões de tais pensamentos vindos de um rapaz que até havia achado interessante e inteligente. Claramente há muito que a sociedade tem que fazer para alertar as pessoas sobre os verdadeiros perigos e a verdadeira problemática do fenómeno «drogas».

Em primeiro lugar existe um grande mito na nossa sociedade: o de que existem drogas leves e de que existem drogas duras. Eu (e mais uma série de psiquiatras também) achamos que não existem drogas leves nem duras, mas apenas e somente drogas. Os efeitos das drogas a nível somático não são o que há de mais interessante nestas substâncias químicas. São os efeitos psicológicos que levam alguém a tomar estas substâncias e, os efeitos psicológicos resultantes da sua utilização que são a verdadeira área de estudo. E é quando se começa a estudar e a analisar os perfis psicológicos das pessoas vulneráveis às drogas, ao alcoolismo e a comportamentos de risco, que se começa a ver qual a verdadeira história de terror por detrás destes comportamentos.

Mas antes de falar deles vou fazer um parêntesis para analisar dois tipos de preconceito que não podem ser analisados em paralelo dadas as suas origens totalmente antagónicas; são eles o preconceito “anti-drogas” e o preconceito “anti-gay”. A orientação sexual e o comportamento de risco de ingestão de substâncias químicas ilícitas, nomeadamente, de drogas, têm tanto que ver uma com a outra como um bocejo do Zé da Esquina tem que ver com as auroras do planeta Marte: ou seja, NADA! A orientação sexual é algo que não pode ser escolhido, é inato ou então formado muito precocemente, e estudos recentes (vide VISÃO, nº. 638, 26 Maio a 1 de Junho de 2005, pág. 88 – artigo traduzido da “Times”) mostraram que existem indícios muito fortes, estudados pela comunidade científica, para a origem biológica da homossexualidade. Desta forma não há muito que um homossexual possa fazer em relação à sua orientação sexual a não ser aceitar-se e viver a sua vida o melhor que souber. Agora talvez as pessoas possam perceber a falta de sentido de expressões como “estilo de vida gay”, “ele/ela virou”, “foram as más companhias”, etc., que tantas e tantas vezes somos obrigados a ouvir. A homossexualidade não é um comportamento social que se possa escolher com o nosso livre arbítrio, é sim uma característica pessoal imutável e natural, tal e qual como qualquer outra característica humana. O consumo de drogas é um comportamento. Pode ser, ou não, escolhido de acordo com a vontade e o livre arbítrio de cada ser humano. Cada ser humano é portanto responsável pelo seu próprio comportamento. O preconceito “anti-gay” é declaradamente uma violação da Carta Universal dos Direitos Humanos, e em Portugal, uma violação da Constituição da República Portuguesa. O preconceito “anti-drogas” é uma questão social de saúde pública.

O consumo de drogas provoca aquilo que em psiquiatria e em psicologia se chama a “despersonalização” do indivíduo. Mas o que é exactamente isso da “despersonalização” e porque é tão perigoso? A despersonalização é uma espécie de transe, em que o indivíduo entra numa vivência “desconectada” da realidade. Esta despersonalização provoca um refúgio muito fácil (no sentido da sua disponibilidade imediata, mas no entanto muito doloroso psicologicamente) e prazeroso para quem quer fugir à realidade através de sensações fortes. Para qualquer indivíduo, recorrer à droga é devido a (1) ser incapaz de obter prazer ou sensação de diversão sem o seu uso, ou (2) desejar esquecer os verdadeiros problemas da sua vida com os quais não consegue lidar, refugiando-se na falsa sensação de bem-estar e realização oferecida pelos efeitos do consumo de substâncias ilícitas. Quando alguém consome drogas tem (quase sempre) muitos problemas camuflados por detrás desse comportamento de risco, com os quais não consegue lidar, ou os quais não reconhece como reais, negando a própria existência de problemas. Quando afirmei que não gostei das «cenas das drogas» estava a referir-me a isto mesmo. É uma pena e magoa ver pessoas a desperdiçarem uma vida com fugas mal conseguidas para universos paralelos irreais como forma de lidar com as dificuldades que a vida inevitavelmente nos reserva. Não vou de forma alguma a dar sermões aos amigos do RK pois não tenho a menor legitimidade para isso. Não deixo contudo de mostrar o meu desagrado perante estes comportamentos se for confrontado com eles: desaprovo esta fuga “fácil”/rápida aos problemas, desaprovo também a conivência dos “amigos” dessas pessoas perante tais comportamentos auto-destrutivos, refugiando-se estes “amigos” em falsas moralidades como a de que é um “preconceito” a condenação do consumo de drogas. Não se trata de “preconceito”, trata-se sim de alertar para os perigos do consumo das drogas: a desfocalização do real para o fictício, a primazia da fuga continuada face ao enfrentar da crua, dura e dolorosa realidade. Foi a pensar nisto que decidi escrever o título deste post tal como o fiz. Urge tomar-mos consciência que «Vidas de Drogas» escondem quase sempre «Drogas de Vidas». É daí também que vem o célebre cliché popular muito comum, usado face a dificuldades ou infelicidades momentâneas: “… que droga de vida que tenho…”! Aliás, esta expressão associa muito convenientemente os dois assuntos centrais da problemática da droga: uma “vida” com problemas, com dificuldades, com desaires, perdida, fútil, cheia de desilusões e sonhos não concretizados; com a “droga”, sinónimo destas mesmas causas e do sofrimento a elas associado.

Uma equação possível para o fluir de acontecimentos que levam alguém à “droga” pode ser a seguinte:

“dificuldade”, “problema”, “sonho desfeito”, “desilusão”, “perda”, “falta de confiança em si mesmo”, “falta de auto-estima”, “falta de esperança”, “depressão”, “ansiedade”, “pânico”

+

“dificuldade em reagir”, “desistência”, “negação dos problemas”, “tentativa de fuga aos problemas”, “falta de apoio social”, “falta de modelos positivos no seu círculo de amigos”, “falta de apoio familiar”, “laços familiares débeis”, “dificuldades de relacionamentos francos com outrem”, “evitar ou negar a procura de ajuda especializada e profissional (como psicólogos e/ou psiquiatras)”

=

“consumo de drogas como forma de despersonalização, fuga de si mesmo e, logo, evitar sofrer, sentir, pensar e lidar com o cerne do mal-estar”

Alguém com problemas não se consegue divertir numa discoteca/bar. É perfeitamente normal. É uma reacção psicológica normal ao mal-estar gerado pelo constante ruminar dos problemas interiores. Posso até contar como eu reajo aos problemas e como aprendi formas mais saudáveis de “coping” (expressão técnica da psicologia para este movimento no sentido de enfrentar/lidar com os nossos problemas). Quando estava muito desanimado, magoado e triste por ter recebido mais uma “tampa” de um rapaz de quem gostava decidir ir para a noite “descontrair”. Fui até ao MG com a minha amiga L. Foi um desastre. Embora estivesse a dançar não me estava a divertir, continuava triste. Acabei a noite sentado numa mesa a olhar as pessoas a dançarem e a imaginar as suas vidas. Não podia divertir-me porque não estava bem comigo mesmo. Só quando estamos bem é que podemos dar o que há de melhor em nós e divertirmo-nos verdadeiramente. Podia ter bebido até à embriaguez e desligar do mundo mas não o fiz, podia ter tomado uma “pastilha” e ter dançado como um louco até às 6h00 mas não o fiz, podia ter-me posto a fumar como um desalmado mas não o fiz, podia ter ido para casa enterrar-me num jogo de computador durante 24h seguidas mas não o fiz, fui fazer aquilo que (também) não deveria ter feito: despersonalizar-me através da música e da dança. Resultado: estava triste, os problemas ruminavam ainda na minha cabeça, não me diverti, gastei dinheiro na discoteca, fiquei cansado, não dormi e não fui a melhor companhia para a minha amiga L. Agora uso outras técnicas mais saudáveis. Falo, por exemplo, com os meus amigos sobre o que sinto, o que penso e o que desejo. Passeio pelos jardins do Parque das Nações e sento-me num banco a olhar o Tejo sereno e a pensar sobre o que fiz, o que não fiz, a avaliar o passado e o presente, estabelecer metas para o futuro… Desta forma, a pouco e pouco, sem colocar a minha vida me perigo, nem perder a consciência para não pensar (como um cobarde), com respeito por mim próprio, vou caminhando na direcção certa, da recuperação, da felicidade que todos almejamos.

Outro comportamento de risco que não é nem o consumo de drogas, de álcool ou de tabaco, é ter relações sexuais desprotegidas. Frequentar saunas gay para engates e relações sexuais esporádicas (protegidas ou não) é outro comportamento psicologicamente auto-destrutivo e uma forma errada de lidar com o problema dos “relacionamentos de afectos” ou então do “compromisso”. O facto de se ir a uma sauna não tem nada de mal, mas penso que quem vai a uma “sauna gay” não vai propriamente para relaxar, porque para isso utilizaria a do seu ginásio como por exemplo a do Holmes Place!!!

Há pois vários tipos de «drogas» (no sentido lato): as substâncias ilícitas, o alcoolismo, o tabaco, os jogos de computador, a música nos headphones aos altos berros desde que se acorde até que se deite, o sexo esporádico (“one night stand”), sexo desprotegido, tornar-se workaholic, etc.

Outra coisa que me fez confusão na reacção do P. foi o facto de ele se dizer amigo dessas pessoas que se drogam por tudo e por nada e que se encharcam em álcool. Um amigo não é aquele que dá sempre pancadinhas nas costas e diz “estou contigo” ou “vai em frente” quando uma pessoa está na berma de um precipício. Um amigo é aquele que nos dá puxões de orelhas quando fazemos asneiras e que não compactua com comportamentos auto-destruidores ou de auto-flagelação dos seus amigos. Um amigo é uma voz de alerta, de apoio, mas de um apoio em relação ao bem-estar, e não um apoiante de fugas perigosas da realidade em direcção a mundos irreais só para não se ter que encarar os problemas de frente. Um amigo não pode no entanto forçar/obrigar ninguém a mudar de comportamento, especialmente no que se refere às drogas. Todos os estudos feitos sobre reabilitação de toxicodependentes mostram que os casos de maior sucesso ocorrem quando a decisão de iniciar um tratamento parte do próprio toxicodependente. Quando os toxicodependentes são forçados a tratarem-se a taxa de sucesso baixa enormemente, e por seu turno a taxa de reincidência aumenta enormemente. O amigo deve pois, “estar lá” quando o seu amigo toma a difícil, mas corajosa, decisão de deixar as drogas e voltar a viver uma vida plena.

Não sei se algum dia o P. vai ler este post mas certamente teria o maior gosto em discutir estes tópicos com ele.

Deixo a minha dica:

«DIZ NÃO ÁS DROGAS»!

5 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Olá P.!

Gostei imenso deste teu desabafo/artigo. Já pensaste em partilha-lo com mais pessoas, para o grande publico, através de um jornal?

abr

junho 21, 2005 9:45 da tarde  
Blogger Mars_Crazy said...

Olá,

Penso que não teria grande sorte em tentar publicar estes pequenos posts que faço. Além disso nem sequer sei quais os jornais/revistas que estaria interessados. E este blog é mesmo para eu desabafar comigo mesmo... por isso, deixo-me andar.

Abraço,
Mars

junho 22, 2005 8:33 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Mt bem Pedrinho, apesar de inserido numa realidade q nao é a minha... e um problema q abarca td a sociedade, e sem duvida q deve ser falado e alertado, mas infelizmente nem tds sao fortes... as vezes nem à a força de aceitar o grave problema q os domina...

junho 23, 2005 10:09 da tarde  
Blogger tia go lopes plus blogger at gmail said...

Não existe diferença entre drogas leves e drogas duras?

Ora aí é que está um grande equívoco.

Nesse aspecto os dados científicos estão bem longe das políticas implementadas que dizem que essas drogas são todas iguais.

E tenho dito! ;)

julho 02, 2005 5:11 da manhã  
Blogger maria ideumad said...

Com o Sofrimento que estou a passar e a viver com um familiar só posso "DIZER NÂO ÀS DROGAS E ALCOOL". Tão doloroso momento que fiz uma pausa no meu blog, para continuar a falar sobre este assunto..

Maria

março 22, 2006 11:42 da tarde  

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