domingo, outubro 22, 2006

Eclipse do SOL

Na sua edição número 5, de 14 de Outubro de 2006, o semanário SOL contém um artigo de opinião, na página 3, da autoria de António José Saraiva, com o título «Uma cultura da morte» em que é brandida mais uma vez a espada da homofobia. E certamente que todos nós sabemos que as espadas servem para a morte mais do que para a vida.

A ideia principal do artigo é fundamentada no problema factual do decréscimo demográfico alarmante da Europa Ocidental. Não é nem um problema novo, nem inerentemente português nem sequer um problema especificamente da Europa Ocidental; qualquer análise demográfica mostrará a situação complicada do Japão. Chamam-lhe um problema das sociedades desenvolvidas. O mais provável é que ninguém perceba muito bem do que se trata.

No referido artigo, António José Saraiva, afirma que um dos problemas de Portugal é a sua “decadência” demográfica, a falta de crianças e jovens, e com eles a falta de alegria, de energia, de optimismo, de produtividade, de saúde, de sustentabilidade. É a sua opinião claro, e como tal tem todo o direito a tê-la. A visão de Portugal como uma sociedade “decadente” é também uma opinião sua, sendo que eu penso que a sociedade portuguesa é muito menos “decadente” do que, por exemplo, a Rússia, ou o Portugal pré-1974. Portugal tem um regime republicano verdadeiramente democrático há pouco mais de 30 anos. Os EUA têm o seu regime democrático há 200 anos. Acredito que com o tempo Portugal e os portugueses irão corrigir o que precisa de ser corrigido.

A certa altura, António José Saraiva escreve o seguinte:
[...]
Em lugar disto, porém, discute-se o aborto.
Discutem-se os casamentos dos homossexuais (por natureza estéreis).
Debate-se a eutanásia.
Promove-se uma cultura da morte.
[...]
A morte faz tanto parte da vida como o nascimento. Fugir de questões complicadas, difíceis no campo ético ou deontológico, ou somente difíceis porque são contrárias ao conservadorismo crónico de Portugal e dos portugueses, não as resolve, apenas nos esquecemos que elas existem.

Este género de colagem «Aborto» + «Casamento» (civil entre pessoas do mesmo sexo) + «Eutanásia» + «Cultura da morte», é deveras imprecisa e despropositada. A sua existência denuncia imediatamente a existência de homofobia, ou na melhor das hipóteses de ignorância. São atitudes homofóbicas recorrentes desta índole que mostra, a todos os jovens homossexuais, desde muito cedo, que a sua presença no mundo não é bem-vinda. As crianças e jovens homossexuais, 10% de todas as crianças e jovens nacionais, nascem e crescem a ouvir ou a sentir esta homofobia constantemente. Como consequência desta fortíssima e constante pressão social muitos deles acabam com as suas vidas suicidando-se. A taxa de suicídio entre a população homossexual juvenil é entre 3 a 5 vezes superior que a sua homóloga entre a população juvenil heterossexual. No entanto, sempre que se fala, na comunicação social de massas, de “direitos”, sempre que há mais e melhor informação e educação para a sexualidade humana (tão ignorada pelos próprios humanos), os homossexuais, jovens e adultos, sentem que lhes está a ser prestada atenção, e com isso, talvez, protecção (algo que é uma garantia de nascença para 90% da população, não o é para os restantes 10%). Quando se ouve falar que o Governo está a ponderar abordar o tema do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, os homossexuais (jovens e adultos) sentem mais dignidade, mais confiança, mais auto-estima e comungam de um maior sentimento de comunidade. Estes sentimentos bons levam por sua vez a menos suicídios e a menos depressões. Levam a mais vida, e a uma vida de maior qualidade. E ganha-se isto tudo, simplesmente(!), por se dar atenção, por se respeitar, por se tratar com humanidade, um décimo da população!

No caso do Casamento Civil entre pessoas do mesmo sexo o que está em causa é o princípio da igualdade de direitos e deveres entre todos os cidadãos nacionais. Um jovem casal heterossexual pode escolher entre casar-se, efectuar uma união de facto ou não fazer nem uma coisa nem outra. Um jovem casal homossexual só pode escolher entre efectuar uma união de facto ou não. Há uma redução de direitos óbvia, contrária à própria constituição, no seu artigo 13º. Esta redução só pode ser explicada pela homofobia latente na sociedade. Um casal homossexual é em todos os aspectos igual a um casal heterossexual, ambos os membros do casal se amam e ambos os membros do casal desejam constituir uma família. A possibilidade de um casal homossexual poder constituir família e de esta ser reconhecida legalmente pelo Estado, e por extensão pela sociedade, fornece ao casal um sentimento único de dignidade humana. Mais uma vez, esta possibilidade (casamento civil e constituição de família) e a dignidade que lhe está imbuída só podem provocar efeitos positivos, como mais produtividade, mais auto-estima, mais autoconfiança e maior sentimento de comunidade.

Não é pois por acaso que a população homossexual, e as diversas associações que a representam e que lutam pelos seus direitos, se empenharam tanto no dossier da inseminação artificial. Defendia-se que o enquadramento legal da inseminação artificial em Portugal fosse, senão igual, pelo menos parecido, ao que existe em Espanha desde os anos 80. Aí, qualquer mulher adulta em posse das suas plenas faculdades mentais, e com capacidade económico-financeira para sustentar mais uma criança, pode efectuar uma inseminação artificial. Não é preciso que esteja casada, ou em união de facto, e caso esteja, não interessa com quem está: se com um homem, ou uma mulher. Os homossexuais femininos, i.e. as lésbicas, têm assim, desde os anos 80, a possibilidade de engravidar em Espanha, e de facto muitas portuguesas (heterossexuais e homossexuais) atravessam a fronteira todos os anos para aí fazerem o que lhes negam em Portugal: gerar vida. As associações que lutam especificamente pelos direitos das lésbicas em Portugal reclamam desde há muito este direito: o direito à inseminação artificial aberta a todas as mulheres. Conjuntamente com as restantes associações generalistas de defesa dos direitos dos homossexuais, reclamam ainda o direito ao Casamento Civil, e com ele, à estabilidade e segurança legais da constituição de uma família. Lutam pois pela homoparentalidade e pela vida que daí surge.

No campo da adopção de crianças por parte de casais homossexuais está em causa, tal como no caso do Casamento Civil, a igualdade entre todos os cidadãos nacionais perante a Lei. Como sempre, em casos de adopção, acima de tudo está o Primado da Criança que não deve ser nunca posto em causa: a criança e os interesses da criança estão sempre em primeiro lugar, e é à criança que assiste o direito de ter uma família, e não ao casal o suposto direito de ter uma criança. O que a população homossexual defende é o acesso ao processo de adopção nas mesmas condições de igualdade (entre casais homossexuais e heterossexuais), é haver a possibilidade de os casais homossexuais poderem constituir uma família com filhos. O que se pretende é o reconhecimento que todos os seres humanos, independentemente de serem homossexuais ou heterossexuais, têm a capacidade da parentalidade (maternidade ou paternidade), e que a homoparentalidade é em tudo igual à parentalidade de casais heterossexuais. Esta atitude é apoiada por três instituições de peso: a Associação Americana de Psiquiatria, a Associação Americana de Psicologia e a Academia Americana de Pediatria (esta última especificamente dedicada ao estudo da criança). É hoje um dado cientificamente adquirido que os pais e mães homossexuais são tão capazes de serem pais e mães que os seus congéneres heterossexuais. Mais uma vez se pode constatar que defender a adopção por parte de homossexuais é falar de vida, e não de morte.

Em resumo, o que é que os homossexuais querem? Numa frase muito simples poderia dizer que os homossexuais querem «os mesmo direitos e os mesmos deveres». Querem o direito ao acesso ao casamento civil, querem o direito à constituição de família, querem o acesso aos mecanismos de acesso à homoparentalidade, ou seja, acesso, em regime de igualdade, à inseminação artificial e à adopção. Todos estes direitos levam em última instância à vida e a uma maior felicidade do casal. Logo, a discussão da homossexualidade e dos direitos dos homossexuais, é uma discussão sobre a vida.

Mesmo a afirmação de António José Saraiva de que os homossexuais são «estéreis por natureza» é uma não-verdade. Cada membro do casal é fértil, e se não o for, não é fértil com a mesma incidência que um heterossexual. Desta forma, cada membro de um casal homossexual é fértil e capaz de geral filhos da mesma forma que cada membro de um casal heterossexual também o é. O que já não é verdade é que um casal de homossexuais possa ter filhos um com o outro. A homoparentalidade num casal homossexual é planeada e preparada. No caso de casais lésbicos existe a possibilidade de inseminação artificial (em Espanha), e deste modo, ultrapassar um constrangimento biológico. No caso dos casais gays, estes podem sempre doar esperma em bancos de esperma e assim ter a possibilidade de virem a ter filhos seus, embora nunca o venham a saber; tal como as lésbicas podem doar óvulos em instituições especializadas. Desta forma, todos os homossexuais, tal como todos os heterossexuais, podem gerar vida, à excepção do infeliz acaso de serem estéreis. Tal como podem escolher não vir a ter filhos, como muitos casais decidem.

António José Saraiva diz ainda no mesmo artigo já mencionado:
[...]
Tal como há uma parada do ‘orgulho gay’, os militantes pró-aborto defendem o orgulho em abortar.
[...]
Mais uma vez trata-se de uma afirmação infeliz. Abstenho-me aqui de considerações éticas e morais sobre o aborto (refiro apenas que muitos casais homossexuais gostariam muito que lhes fosse dada a possibilidade de ficarem com essas crianças que outros querem abortar). Aquilo que me interessa aqui é a homofobia que se nota nesta afirmação. As «Marchas do Orgulho Gay» derivam directamente das «Gay Pride Marches» que se efectuaram nos EUA, a partir da década de 70, em reacção à homofobia institucional e social que aí existia. Não é uma “parada” pelo simples facto de ser política. Outro aspecto infeliz, desta associação indiscriminada entre abortar e ser-se homossexual, é que os homossexuais não «escolhem» ser homossexuais. Tal como uma pessoa de tez preta não escolhe sê-lo, nem uma pessoa de tez branca o escolhe tão-pouco. Abortar sim, é uma escolha. É uma escolha pessoal, consciente, do livre arbítrio do ser humano que a faz. É uma manifestação da liberdade pessoal da pessoa que aborta. O homossexual nunca escolheu nada em relação à sua orientação sexual, e só pode escolher uma de entre duas coisas: viver na vergonha de gostar de pessoas do mesmo sexo, triste, enclausurado, limitado, infeliz, ou, ao invés, viver consciente do que é, do que sente, e das consequências que isso acarreta para sua vida, vivendo com orgulho por viver com respeito por si próprio. É desta forma que a palavra «orgulho» deve ser contextualizada, pois foi assim que historicamente nasceu a expressão.

Esteja Portugal como estiver, e seja como for que os portugueses olhem para Portugal, há muito caminho pela frente para acabar com a homofobia e para garantir que todos os cidadãos sejam de facto iguais perante a Lei e protegidos pelo Estado de outros cidadãos menos bem intencionados. A aprovação da alteração do artigo 13º, que agora engloba «orientação sexual» como uma das causas pela qual não se pode ser discriminado, foi uma vitória civilizacional importante no caminho para um Portugal mais justo e para uma Portugalidade de tolerância. Existe ainda um longo caminho pela frente para passar da intenção à prática. Acredito que isso poderá ser conseguido desde que o espírito democrático impere.