quinta-feira, novembro 16, 2006

Ficção

O ruído maçador da multidão a falar toda ao mesmo tempo era substancial, especialmente àquela hora - uma hora da tarde - e naquele bar que tem já de si uma acústica péssima. Hora de almoço, do fim das aulas da manhã, do começo das aulas da tarde. Magotes de alunos excitados e barulhentos acumulavam-se no Alkimia, uns para almoçar, outros para tomar café, a maioria para conversar. Já tinha almoçado na cantina, igualmente barulhenta, mas compensadoramente mais barata. No entanto o pequeno luxo do café social tinha que ser tomado ali. Este hábito remontava aos meus primeiros anos como estudante e ganhou força quando me apaixonei, ou assim pensava naquele tempo, por um rapaz caloiro de engenharia biológica de uma beleza implacável e marcante, dono de uma maneira de ser vincada, mas muito suave na forma de trato. Esse miúdo, na altura, passava os intervalos ali, especialmente os intervalos de almoço, pelo que vinha de propósito ao Alkimia para o espiar secretamente, sem nunca ter coragem para lhe dizer seja o que for. Agora, passados anos, esse rapaz é apenas meu amigo, e não creio que um relacionamento alguma vez tivesse vingado entre nós. Já nem sequer está mais pela faculdade... Entrei normalmente no bar, absorto nos meus pensamentos, em modo automático como lhe chamo, daquele automatismo que nos desconcerta assim que acordamos e nos perguntamos preocupados: “como é que eu vim aqui parar?”. Coloquei-me na fila para a senha. Contei o dinheiro. Olhei para a televisão, demasiado alta para ser confortável, sintonizada numa programação tipicamente de “lixo”. Estava quase a chegar a minha vez. O funcionário do bar, na sua simpatia característica, pergunta-me delicada e educadamente o que desejo com um sorriso radioso na cara: “...a seguir...” (olhar indiferente mas apressado, algures entre o infinito, a televisão e a nossa orelha). “Um café.” (Upss, esqueci-me do “por favor”.) Dirigi-me para o balcão. Esperei no balcão até ter a sorte de alguém dar por mim. Peguei no café, num pacote de açúcar e num pequeno pauzinho de plástico, e virei-me para o conjunto das mesas caóticas. Que confusão. Pessoas em pé, pessoas sentadas, pessoas a estudar, pessoas em PC’s, pessoas a conversar, pessoas na fila, pessoas na esplanada, pessoas a entupir o caminho... Tentei identificar alguma feição conhecida ou então um lugar o mais isolado possível do resto do pessoal todo (detesto ter que ouvir conversas que não me interessam, detesto a promiscuidade de mesas contíguas). Vi o meu amigo Manuel! Ao seu lado estavam os inseparáveis Luís e Miguel, e à sua frente estava um rapaz lindíssimo que nunca tive o privilégio de conhecer como gostaria. O coração acelerou-se perante esta visão inesperada. Dirigi-me para as mesas deles. Por azar estavam completamente cheias. Não me podia sentar... Raios. Cumprimentei-os. À excepção do Manuel nenhum me prestou muita atenção, continuando as suas conversas privadas como se eu não estivesse ali. Senti-me triste e deslocado. “Porquê? Porque é que as pessoas são assim?” “Esquece não vale a pena tentar perceber.” Já não era a primeira vez que ninguém me ligava nenhum quando estava presente, mas mesmo assim, sempre que sucedia novamente sofria como se fosse a primeira vez. Perante a indiferença de todos, fiz um sorriso amarelo, despedi-me (aposto que nem sequer notaram), e fui-me sentar mais atrás, no fundo do bar. Pousei o café. Rasguei o pacote de açúcar e meti na chávena o pauzito de plástico para mexer. Não podia fazer mais nada quanto aos meus “amigos” a não ser observa-los de longe. Retirei alguns apontamentos da mochila e comecei a tentar estudar ao mesmo tempo que deixava arrefecer o café com movimentos circulares lentos da colher aldrabada e plastificada que me deram... O rapaz em frente ao Manuel prendia-me a atenção... Espiei-o um pouco. Como é natural não me viu porque estava de costas para mim. Não o conhecia verdadeiramente, nem sequer sabia se era gay. O facto de se dar bem com o Manuel, o Luís e o Miguel não queria dizer nada, mas mesmo assim havia sempre uma dúvida no ar - ou melhor, uma esperança! - que persistia! Voltei a olha-lo, à sua pele branca, à sua postura calma. Ignorava na altura que o observava, como sempre havia ignorado a minha presença nas raras vezes que nos havíamos visto. Tomei por garantido que não tinha “curtido” a minha forma de ser, ou então que era um hetero que não gostava de falar com amigos gays do Manuel - esse sim, assumidamente gay na faculdade. Por mais voltas que desse à minha cabeça só ficava esse pensamento repetitivo: por alguma razão que desconhecia o rapaz não ia com a minha cara. Pena, porque eu achei-o extremamente interessante como primeira impressão. Por outro lado não me recordava de nada que tivesse feito de errado com o rapaz, ou que o tivesse magoado de alguma forma. Mal nos conhecíamos na verdade, nem sequer sabia o nome dele, apenas nos tínhamos sido apresentados uma vez nesse mesmo bar - já há algum tempo atrás - e nos encontrado, esporadicamente e por mero acaso, duas ou três vezes, sempre com outras pessoas à nossa volta, e sempre por intermédio do Manuel pois são os dois do mesmo curso. Olhei para ele uma vez mais. Estava a ouvir a conversa animada do Luís e do Miguel. Olhei de volta para os apontamentos aborrecidos ao mesmo tempo que bebia o café - que continuava queimado apesar da máquina nova que tinham colocado neste semestre. O rapaz era muito bonito, nisso não havia dúvida. A maneira de ser que consegui perscrutar era serena, interrogativa, talvez um pouco tímida, camuflando os sentimentos e emoções. Olhos castanhos, doces, que inspiravam segurança imediata. Tinha tez branca, quase nada queimada pelo sol. A cara rapidamente se ruborizava, em tons avermelhados, que o tornavam extremamente querido, ternurento e atraente. Sem dúvida uma pessoa que gostaria de conhecer melhor. Há muito que pensava nisso, pena que nunca tivesse tido essa oportunidade. Olhei novamente para ele... Desapareceu! Só ficaram os três amigos. Ele desapareceu! Fiquei pensativo por momentos. O mais certo é que tudo isto não passasse de mais um sonho acordado que tantas vezes tinha. O mais certo é que ele nunca se tivesse apercebido que eu existia, e mesmo que ele se tivesse apercebido que era amigo do Manuel ele era provavelmente hetero reduzindo assim os meus sonhos a meros traços masoquistas da minha personalidade... Desejei que o meu sonho de encontrar alguém especial na faculdade se pudesse concretizar mas... I’ll keep dreaming!