quarta-feira, janeiro 12, 2005

The End of a Dream

A força de inércia actuava em todo o meu corpo. Decrescendo de velocidade até à imobilização final, segurava-me com uma mão à barra de alumínio que liga o chão ao tecto do metro. As portas abriam com um pequeno estrondo enquanto o metro acabava de parar. Saía com o passo acelerado acompanhando a massa humana que caminhava como um todo para a saída da estação. Filas para passar nas portas automáticas do metro. Sempre alguém a tentar enganar a máquina, sempre alguém que protesta veementemente com a máquina, lançando raios e curiscos pelos olhos, e perdigotos pela boca salivante através dos palavrões exaltados com que manifesta a maçada por a porta não abrir. Uma menina simpática diz-lhe que deve afastar-se da porta antes de colocar o cartão com o chip electrónico. O homem com uma cara de quem não entendeu o que ela queria, deu um passo atrás, passou a carteira uma vez mais na perturberância azul da máquina e um sinal sonoro breve assinalava o abrir mágico da porta. Avançou rapidamente abanando a cabeça como que constatando uma vez mais a miséria em que está o país.

Apesar de estar consciente de que iria chegar muito antes da hora combinada, algo impedia que as minhas pernas andassem um pouco mais devagar. As minhas pernas dirigiam-me autonomamente, como um veículo robotizado automático que segue uma rota padronizada, para o meu destino. As pessoas que me envolviam a essa hora da noite eram poucas mas pareciam-me sombras que passavam, difusas, imperceptíveis, sem importância. Rodopiando livremente as preocupações acotovelavam-se em frente aos meus olhos. Será que a mulher com que havia falado no Domingo ao telefone marcou mesmo a mesa para dois? Estava um pouco de barulho no background enquanto falava com ela. Será que percebeu bem o meu nome? Desde a semana passada que estava neste estado ansioso, sôfrego por este momento. Agora, a uma hora das onze da noite tremia sem razão. Havia telefonado com tempo, confirmado a actuação dos Donna Maria que havia conhecido na semana anterior, tinha escolhido a mesa que queria, até inclusivamente pedido uma vela especial para a mesa para dar um ar mais aconchegado e romântico. Teria que ser romântica essa noite. A luz do cinema Quarteto fazia-se ver agora ao fundo por entre as árvores. Os carros passavam apressados pela Avenida de Roma. Como sempre, em Lisboa toda a gente tem pressa, mesmo à noite há sempre alguém que tem que ir rapidamente para o outro lado da cidade, muitas vezes jovens como eu a encaminharem-se para o Bairro Alto a grande velocidade.

À porta dos Templários um jovem alto conversava com o funcionário do bar que estava a controlar as entradas. Olhei em volta nervosamente procurando o Miguel. Como seria óbvio ainda não tinha chegado, afinal de contas faltava quase uma hora para a hora marcada. “Que seca que vou apanhar…”, pensava eu ao mesmo tempo que fazia uma nota mental para que da próxima vez não venha de véspera só para acalmar a ansiedade. O Miguel era um rapaz da minha altura, tinha olhos azuis mas que por vezes passavam a verde conforme a luz ambiente, era magrinho – talvez mais do que eu – com uma estrutura frágil – que tanto me atraía, cabelo curto e claro. Costumava vestir casualmente e tinha um sorriso maravilhoso, o que é pena é que não costumasse rir tanto quanto eu gostaria de o ver a rir. Infelizmente tinha um feitio difícil. Reservado até para os amigos mais chegados, fazia de qualquer tentativa para o conhecer um verdadeiro exercício de estratégia militar, de planeamento, de paciência e de perseverança. Por motivos que desconhecia detestava o telemóvel e só o usava para enviar e receber sms’s. Era escusado telefonar-lhe para saber se por acaso já tinha saído de casa, se estava a fazer tempo em casa, ou se iria chegar atrasado por qualquer inconveniência. O único meio de comunicação que tinha com ele era mesmo o MSN. Benditas novas tecnologias! Se não fossem elas teria sido impossível conhece-lo, conversar com ele, apaixonar-me por ele e combinar este café especial que, esperava, iria revelar as possibilidades de vir a ser retribuído.

Decidi ir ao Quarteto ver os filmes que estavam a passar por esta altura de Janeiro – com a época de exames durante este mês havia pouco mais tempo livre do que o estritamente necessário para comer e dormir. As vozes e risos de grupos de pessoas começavam a ouvir-se, carros que andavam à caça de estacionamento pela Rua Flores do Lima avançavam muito vagarosamente na “volta dos tristes” – para quê trazer carro quando o metro é mesmo ali ao lado? Os cartazes mostravam os filmes em exibição e os que estariam brevemente em estreia. Nenhum me chamou particularmente a atenção. Vagueava mais do que tudo pelos meus pensamentos. Não deixava de me espantar quão diferente estava o Miguel desde a última vez que o tinha visto. Tinha um blog na net muito popular, e desde Junho do ano passado que o via regularmente, para não dizer diariamente, em busca das novidades do seu dia, tentado entrever por entre as linhas que escrevia o estado de espírito dele, certificar-me que não tinha ainda encontrado um rapaz pelo qual se tivesse apaixonado… Apesar ter tentado aproximar-me dele desde essa altura nem tudo correu bem e algumas vezes zanguei-me com ele. Verdade seja dita que pelo MSN sou um especialista em zangar-me com as pessoas, zangas essas que seriam pouco prováveis se pudesse falar com ele pelo telefone ou pessoalmente, em vez da impessoalidade do MSN. Mas que remédio tinha eu senão sujeitar-me aos condicionalismos dele. Sei que o ano passado não foi um ano particularmente bom para o Miguel. Tinha saído de casa pela primeira vez e estava a morar com dois amigos. A faculdade estava muito parada embora gostasse do curso de informática que estava a tirar. Relacionar-se com outras pessoas era muito difícil e muitas vezes chegava a escrever no blog, encolerizado, que ter relações humanas era demasiado trabalhoso e desgastante. Em parte concordava com ele, olhando para a minha própria vida era óbvio que nunca tive muita sorte nos relacionamentos que tive com outros rapazes. Mas pelo facto de sermos parecidos neste aspecto da nossa personalidade fazia-me crer que talvez com ele fosse possível um relacionamento bem sucedido. Os ingredientes para o sucesso estavam todos lá, pelo menos da minha parte. Uma vaga de pessoas saía divertidamente pelas portas do Quarteto. Devia ter acabado à poucos minutos algum filme e estava a gerar-se alguma confusão no passeio pelo que resolvi voltar para trás, em direcção aos Templários.

Senti o telemóvel a vibrar. Tinha recebido uma mensagem. Tirei o Siemens do bolso das calças verde escuro que estava a usar e carreguei vigorosamente no teclado para aceder à mensagem. Tremia. Era o Miguel. Uma onda de calor percorria-me o corpo, sentia as pupilas a dilatarem, as pernas fraquejavam. Dizia-me que tinha vindo mais cedo porque levava o carro e tinha medo que não houvesse estacionamento. Lancei uma maldição a mim próprio por ter criticado, ainda há instantes, os condutores por levarem carro para o cinema. Dizia que tinha acabado de estacionar e que estava a caminhar para os Templários de acordo com as indicações que lhe havia dado no Domingo. O programa automático das minhas pernas tinha começado a funcionar. A uma velocidade crescente encaminhei-me para os Templários. Estava à porta. Olhava em volta. Perscrutava cada semblante, cada sombra, quaisquer sons de passos faziam-me virar como um radar para a origem do ruído. «Acalma-te Pedro. Acalma-te.» Repetia a mim próprio. Sustive a respiração quando o reconheci, tentando não asfixiar e não parecer nervoso sorri-lhe. Retribuiu-me o sorriso. Estava lindo.

Cumprimentei-o com um aperto de mão e um olhar profundo, íntimo e cúmplice. A uma velocidade alucinante imaginei-me a beija-lo, suavemente, como dois namorados que não se viam há uns tempos. Ainda não acreditava que ele estivesse ali mesmo à minha frente. Ainda antes da passagem de ano me pareceu impossível que ele saísse comigo, especialmente com a facilidade e entusiasmo que tinha demonstrado quando falamos no MSN durante a semana passada. Finalmente tinha mudado, estava mais alegre; aliás, via-se pelo sorriso que ainda conservava enquanto entravamos para o hall do bar. Na noite anterior tive uma insónia descomunal. Mesmo sabendo que o encontro era só às onze horas da noite de segunda-feira, passei a noite em claro agarrado ao computador. No meio disto tudo quem sofreu mais foi o Nuno que me aturou durante parte da noite, até estar tão cansado que teve que fazer uma despedida unilateral e sair do messenger! Tive a contar-lhe os pormenores de todas as conversas que tive com o Miguel durante a semana passada, comentava todas as frases e palavras que o Miguel me tinha dito, entusiasmado com tudo o que acontecia contava-lhe os planos para a saída que tinha preparado com tanto carinho, as esperanças e os sonhos que alimentavam a verdadeira razão desse convite. O Nuno estava feliz por mim, estava verdadeiramente feliz. Era o meu melhor amigo e sabia o quão importante seria este “café” com o Miguel. Suportava as minhas mágoas e recaídas há muito tempo, e sabia que se tudo corresse bem neste encontro eu iria ser muito mais feliz do que tinha sido até então.

Sentamo-nos na mesa que havia escolhido. A vela estava lá como esperava e a menina que nos indicou a mesa levou a pequena placa a dizer “Reservado”. Ao longe montava-se o placo para a actuação que iria ter lugar por volta da uma da manhã. À nossa volta, espalhadas pelas mesas, grupos de amigos e casais conversavam animadamente. Senti-me parte deste mundo, deste país, desta sociedade. Estava ao lado de uma pessoa que adorava, num ambiente que gostava, descontraído e feliz, a viver a vida que afinal era tão bela e tão simples. Ri-me. O Miguel olhou para mim com uma cara enternecida e interrogativa. Disse-lhe que não era nada. Estava de facto a rir-me da minha vida, do quanto me havia sentido perdido e sozinho, quantas vezes havia perdido a esperança de encontrar um rapaz que quisesse uma vida a dois estável. Era possível, e estava mesmo à minha frente com uma camisola da Pull & Bear! Verti muitas lágrimas até chegar a este ponto, mas valeu a pena. Senti o perfume dele. Começamos a falar sobre casualidades, sobre o meu curso, sobre o curso dele, sobre os part-time dele, sobre as associações de que faço parte, sobre os projectos de cada um de nós.

A certa altura ele vira-se para mim e diz-me “Tenho uma coisa para te contar!” Os olhos deles brilhavam. Debruçava-se mais sobre a mesa. Tive uma paragem cardíaca momentânea e uma emoção desmesurada tomou conta do meu peito, as lágrimas vieram-me aos meus olhos e um sorriso enorme abriu-se nos meus lábios, vermelhos do sangue impulsionado pelo coração acelerado. Sentia que ele ia dizer algo de muito pessoal, as mãos dele tremiam. Olhava-me nos olhos. Parecia que ele conseguia ver a minha alma e ouvir os meus pensamentos. “Estou apaixonado!” Abri ligeiramente a boca de estupefacção. Não acreditava no que estava a ouvir. Ele estava a abrir-se comigo de uma forma que nunca antes havia visto e sobre algo muito pessoal. Queria dizer-lhe “Eu também!”, mas queria ainda mais do que isso ouvir pela boca dele as palavras mágicas.

Lembras-te de quando me dizias que deveria ser mais sociável?” – pergunta-me com os olhos fixos nos meus. Acenei com a cabeça prontamente. Estava com a garganta seca, um nó no estômago, uma interrogação na mente. “Pois bem, assim fiz. Conheci um rapaz muito especial no emprego e que também é da minha faculdade. Vê lá como o mundo é pequeno… É divertido, interessante, bonito, super fashion, tem muitos gostos parecidos com os meus e uns olhos azuis penetrantes. No princípio pensei que me teria que livrar dele o mais rapidamente possível, fulmina-lo e despedaça-lo todo… mas houve algo nele que me fez pensar melhor. Ele tinha algo de especial, algo que não via nos outros rapazes… pelo menos nos que conheço… Cedi o suficiente para o conhecer melhor. E prontos! Estou definitivamente, e completamente, apaixonado por ele. Acabei por passar a passagem de ano com ele. Tinha que contar-te. O teu convite veio mesmo na altura certa. Nesta vida não há coincidências…”.

Sorria. Por dentro implodia. De repente fiquei como se não estivesse no meu corpo, como se me estivesse a ver de fora dele, a contemplar o meu corpo sem alma, a ver a ridicularia dessa massa disforme a que eu chamo corpo… Sentia-me oco, trespassado, isolado… Sorria. O sangue jorrava para as veias, quente com a dor desta revelação. Não haveria comprimido algum neste mundo que eliminasse a dor que estava a sentir nesse momento, a pressão cáustica no peito de quem sofre a perda de alguém era colossal… Sorria. Nuno! Nuno! Onde estás? Preciso de ti. Preciso do teu ombro, do teu colo, das tuas mãos a afagarem-me os cabelos enquanto choro encostado a ti até adormecer de cansaço. Onde estás Nuno? Sorria…