quarta-feira, outubro 25, 2006

Cartas do Passado

Ontem, estava a arrumar umas coisas no meu quarto, quando deparei com uma carta que tinha escrito a um meu ex-namorado mas que nunca lhe tinha enviado. Como a vida dá tantas voltas! Ainda há alguns meses era um rapaz feliz e com um companheiro. Lembro-me até de lhe ter falado sobre ela, e ele se ter mostrado interessado em saber o que eu lhe tinha escrito. Como entretanto o nosso relacionamento desapareceu no vácuo da distância e do silêncio, escrevo-lhe aqui aquilo que escrevi nessa altura... (Para não usar os nomes próprios das pessoas que identifico na carta uso antes nomes falsos.)

***

Miguel,

eu não te consigo ajudar se tu não quiseres ser ajudado, eu não te poderei amar se tu não quiseres ser amado. Pensei que com aquela nossa conversa tivesses percebido isto, pensei que tivesses compreendido que um relacionamento tem certas responsabilidades, como estar sempre disponível. Eu estou sempre disponível parta ti. Só em casos excepcionais é que não te direi nada, só se me acontecer alguma coisa (como ser assaltado) é que não te atenderei o telemóvel. Aliás tenho-o para estar contactável, para poder ajudar-te e para tu me poderes ajudar. Já que não me podes telefonar porque não tens saldo deixa-me ser eu a telefonar-te, deixa-me ser eu a manter o contacto. Preocupo-me, mas também me irrito. Não é a primeira, nem a segunda, nem sequer a terceira ou quarta vez que te telefono para encontrar silêncio e desprezo. Já te tinha dito: «Não podes atender? Então desliga logo.» Deixares tocar e ignorares custa-me muito. Penso que deveríamos mesmo pensar sobre isto. Não penso que seja normal. Eu não consigo amar-te se não me deixares que te ame, nem te deixares a ti mesmo amares-me. Talvez devêssemos ponderar dar-mos um tempo à nossa relação. Não vale a pena uma relação quando não temos uma «relação». Se não falamos sequer, porque acho que é o mínimo que se pode ter numa relação, então o que há? Já não te consigo ver, já não passamos um dia juntos há mais de um mês!!! Pergunto-me: «O que aconteceu?». Não sei. Só sei que sem o mínimo de contacto não sei viver. Aflijo-me contigo. Mas o pior é a sensação de que não sentes nem a minha falta nem a minha ausência. Se pensar bem, nunca te vi preocupado porque não podíamos estar juntos. Nunca te vi a querer vir passar uma noite comigo... Não sentes a minha falta? Eu sinto tanto a tua falta. E quando não estás tudo fica mais triste, sinto-me vazio, sem nada, sem ti. Se sofreres tanto como eu quando não falamos um com o outro diz-me. Quero acreditar que existe mais do que umas paredes frias e brancas quando chego a casa, quero acreditar que te posso ligar, mas a verdade é que não posso pois não? Para quê ligar quando não me atendes. Talvez devêssemos deixar de falar um com o outro. Eu não quero, mas se combinarmos assim, pelo menos sei com o que conto, sei o que me espera, e não sofro sempre que o pequeno momento bom de ouvir a tua voz não chega, quando depois de telefonar às 19 e depois às 20, e depois às 21 e depois às 22 e finalmente às 23, não obtenho resposta e sou forçado a desistir. Só sei que me apetece chorar. Mas tenho exame terça. Depois de terça vou ficar uma semana sozinho, sem a Marie ou o Salvador. Guardo a esperança de que queiras passar uns dias comigo mas a razão diz-me que se nem falar pelo telefone queres, estares aqui ao meu lado muito menos. Será que é tudo um sonho mau? Será que estou a exagerar? Porque é que me sinto então tão sozinho? Porque é que perco a esperança?

Mars

domingo, outubro 22, 2006

Eclipse do SOL

Na sua edição número 5, de 14 de Outubro de 2006, o semanário SOL contém um artigo de opinião, na página 3, da autoria de António José Saraiva, com o título «Uma cultura da morte» em que é brandida mais uma vez a espada da homofobia. E certamente que todos nós sabemos que as espadas servem para a morte mais do que para a vida.

A ideia principal do artigo é fundamentada no problema factual do decréscimo demográfico alarmante da Europa Ocidental. Não é nem um problema novo, nem inerentemente português nem sequer um problema especificamente da Europa Ocidental; qualquer análise demográfica mostrará a situação complicada do Japão. Chamam-lhe um problema das sociedades desenvolvidas. O mais provável é que ninguém perceba muito bem do que se trata.

No referido artigo, António José Saraiva, afirma que um dos problemas de Portugal é a sua “decadência” demográfica, a falta de crianças e jovens, e com eles a falta de alegria, de energia, de optimismo, de produtividade, de saúde, de sustentabilidade. É a sua opinião claro, e como tal tem todo o direito a tê-la. A visão de Portugal como uma sociedade “decadente” é também uma opinião sua, sendo que eu penso que a sociedade portuguesa é muito menos “decadente” do que, por exemplo, a Rússia, ou o Portugal pré-1974. Portugal tem um regime republicano verdadeiramente democrático há pouco mais de 30 anos. Os EUA têm o seu regime democrático há 200 anos. Acredito que com o tempo Portugal e os portugueses irão corrigir o que precisa de ser corrigido.

A certa altura, António José Saraiva escreve o seguinte:
[...]
Em lugar disto, porém, discute-se o aborto.
Discutem-se os casamentos dos homossexuais (por natureza estéreis).
Debate-se a eutanásia.
Promove-se uma cultura da morte.
[...]
A morte faz tanto parte da vida como o nascimento. Fugir de questões complicadas, difíceis no campo ético ou deontológico, ou somente difíceis porque são contrárias ao conservadorismo crónico de Portugal e dos portugueses, não as resolve, apenas nos esquecemos que elas existem.

Este género de colagem «Aborto» + «Casamento» (civil entre pessoas do mesmo sexo) + «Eutanásia» + «Cultura da morte», é deveras imprecisa e despropositada. A sua existência denuncia imediatamente a existência de homofobia, ou na melhor das hipóteses de ignorância. São atitudes homofóbicas recorrentes desta índole que mostra, a todos os jovens homossexuais, desde muito cedo, que a sua presença no mundo não é bem-vinda. As crianças e jovens homossexuais, 10% de todas as crianças e jovens nacionais, nascem e crescem a ouvir ou a sentir esta homofobia constantemente. Como consequência desta fortíssima e constante pressão social muitos deles acabam com as suas vidas suicidando-se. A taxa de suicídio entre a população homossexual juvenil é entre 3 a 5 vezes superior que a sua homóloga entre a população juvenil heterossexual. No entanto, sempre que se fala, na comunicação social de massas, de “direitos”, sempre que há mais e melhor informação e educação para a sexualidade humana (tão ignorada pelos próprios humanos), os homossexuais, jovens e adultos, sentem que lhes está a ser prestada atenção, e com isso, talvez, protecção (algo que é uma garantia de nascença para 90% da população, não o é para os restantes 10%). Quando se ouve falar que o Governo está a ponderar abordar o tema do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, os homossexuais (jovens e adultos) sentem mais dignidade, mais confiança, mais auto-estima e comungam de um maior sentimento de comunidade. Estes sentimentos bons levam por sua vez a menos suicídios e a menos depressões. Levam a mais vida, e a uma vida de maior qualidade. E ganha-se isto tudo, simplesmente(!), por se dar atenção, por se respeitar, por se tratar com humanidade, um décimo da população!

No caso do Casamento Civil entre pessoas do mesmo sexo o que está em causa é o princípio da igualdade de direitos e deveres entre todos os cidadãos nacionais. Um jovem casal heterossexual pode escolher entre casar-se, efectuar uma união de facto ou não fazer nem uma coisa nem outra. Um jovem casal homossexual só pode escolher entre efectuar uma união de facto ou não. Há uma redução de direitos óbvia, contrária à própria constituição, no seu artigo 13º. Esta redução só pode ser explicada pela homofobia latente na sociedade. Um casal homossexual é em todos os aspectos igual a um casal heterossexual, ambos os membros do casal se amam e ambos os membros do casal desejam constituir uma família. A possibilidade de um casal homossexual poder constituir família e de esta ser reconhecida legalmente pelo Estado, e por extensão pela sociedade, fornece ao casal um sentimento único de dignidade humana. Mais uma vez, esta possibilidade (casamento civil e constituição de família) e a dignidade que lhe está imbuída só podem provocar efeitos positivos, como mais produtividade, mais auto-estima, mais autoconfiança e maior sentimento de comunidade.

Não é pois por acaso que a população homossexual, e as diversas associações que a representam e que lutam pelos seus direitos, se empenharam tanto no dossier da inseminação artificial. Defendia-se que o enquadramento legal da inseminação artificial em Portugal fosse, senão igual, pelo menos parecido, ao que existe em Espanha desde os anos 80. Aí, qualquer mulher adulta em posse das suas plenas faculdades mentais, e com capacidade económico-financeira para sustentar mais uma criança, pode efectuar uma inseminação artificial. Não é preciso que esteja casada, ou em união de facto, e caso esteja, não interessa com quem está: se com um homem, ou uma mulher. Os homossexuais femininos, i.e. as lésbicas, têm assim, desde os anos 80, a possibilidade de engravidar em Espanha, e de facto muitas portuguesas (heterossexuais e homossexuais) atravessam a fronteira todos os anos para aí fazerem o que lhes negam em Portugal: gerar vida. As associações que lutam especificamente pelos direitos das lésbicas em Portugal reclamam desde há muito este direito: o direito à inseminação artificial aberta a todas as mulheres. Conjuntamente com as restantes associações generalistas de defesa dos direitos dos homossexuais, reclamam ainda o direito ao Casamento Civil, e com ele, à estabilidade e segurança legais da constituição de uma família. Lutam pois pela homoparentalidade e pela vida que daí surge.

No campo da adopção de crianças por parte de casais homossexuais está em causa, tal como no caso do Casamento Civil, a igualdade entre todos os cidadãos nacionais perante a Lei. Como sempre, em casos de adopção, acima de tudo está o Primado da Criança que não deve ser nunca posto em causa: a criança e os interesses da criança estão sempre em primeiro lugar, e é à criança que assiste o direito de ter uma família, e não ao casal o suposto direito de ter uma criança. O que a população homossexual defende é o acesso ao processo de adopção nas mesmas condições de igualdade (entre casais homossexuais e heterossexuais), é haver a possibilidade de os casais homossexuais poderem constituir uma família com filhos. O que se pretende é o reconhecimento que todos os seres humanos, independentemente de serem homossexuais ou heterossexuais, têm a capacidade da parentalidade (maternidade ou paternidade), e que a homoparentalidade é em tudo igual à parentalidade de casais heterossexuais. Esta atitude é apoiada por três instituições de peso: a Associação Americana de Psiquiatria, a Associação Americana de Psicologia e a Academia Americana de Pediatria (esta última especificamente dedicada ao estudo da criança). É hoje um dado cientificamente adquirido que os pais e mães homossexuais são tão capazes de serem pais e mães que os seus congéneres heterossexuais. Mais uma vez se pode constatar que defender a adopção por parte de homossexuais é falar de vida, e não de morte.

Em resumo, o que é que os homossexuais querem? Numa frase muito simples poderia dizer que os homossexuais querem «os mesmo direitos e os mesmos deveres». Querem o direito ao acesso ao casamento civil, querem o direito à constituição de família, querem o acesso aos mecanismos de acesso à homoparentalidade, ou seja, acesso, em regime de igualdade, à inseminação artificial e à adopção. Todos estes direitos levam em última instância à vida e a uma maior felicidade do casal. Logo, a discussão da homossexualidade e dos direitos dos homossexuais, é uma discussão sobre a vida.

Mesmo a afirmação de António José Saraiva de que os homossexuais são «estéreis por natureza» é uma não-verdade. Cada membro do casal é fértil, e se não o for, não é fértil com a mesma incidência que um heterossexual. Desta forma, cada membro de um casal homossexual é fértil e capaz de geral filhos da mesma forma que cada membro de um casal heterossexual também o é. O que já não é verdade é que um casal de homossexuais possa ter filhos um com o outro. A homoparentalidade num casal homossexual é planeada e preparada. No caso de casais lésbicos existe a possibilidade de inseminação artificial (em Espanha), e deste modo, ultrapassar um constrangimento biológico. No caso dos casais gays, estes podem sempre doar esperma em bancos de esperma e assim ter a possibilidade de virem a ter filhos seus, embora nunca o venham a saber; tal como as lésbicas podem doar óvulos em instituições especializadas. Desta forma, todos os homossexuais, tal como todos os heterossexuais, podem gerar vida, à excepção do infeliz acaso de serem estéreis. Tal como podem escolher não vir a ter filhos, como muitos casais decidem.

António José Saraiva diz ainda no mesmo artigo já mencionado:
[...]
Tal como há uma parada do ‘orgulho gay’, os militantes pró-aborto defendem o orgulho em abortar.
[...]
Mais uma vez trata-se de uma afirmação infeliz. Abstenho-me aqui de considerações éticas e morais sobre o aborto (refiro apenas que muitos casais homossexuais gostariam muito que lhes fosse dada a possibilidade de ficarem com essas crianças que outros querem abortar). Aquilo que me interessa aqui é a homofobia que se nota nesta afirmação. As «Marchas do Orgulho Gay» derivam directamente das «Gay Pride Marches» que se efectuaram nos EUA, a partir da década de 70, em reacção à homofobia institucional e social que aí existia. Não é uma “parada” pelo simples facto de ser política. Outro aspecto infeliz, desta associação indiscriminada entre abortar e ser-se homossexual, é que os homossexuais não «escolhem» ser homossexuais. Tal como uma pessoa de tez preta não escolhe sê-lo, nem uma pessoa de tez branca o escolhe tão-pouco. Abortar sim, é uma escolha. É uma escolha pessoal, consciente, do livre arbítrio do ser humano que a faz. É uma manifestação da liberdade pessoal da pessoa que aborta. O homossexual nunca escolheu nada em relação à sua orientação sexual, e só pode escolher uma de entre duas coisas: viver na vergonha de gostar de pessoas do mesmo sexo, triste, enclausurado, limitado, infeliz, ou, ao invés, viver consciente do que é, do que sente, e das consequências que isso acarreta para sua vida, vivendo com orgulho por viver com respeito por si próprio. É desta forma que a palavra «orgulho» deve ser contextualizada, pois foi assim que historicamente nasceu a expressão.

Esteja Portugal como estiver, e seja como for que os portugueses olhem para Portugal, há muito caminho pela frente para acabar com a homofobia e para garantir que todos os cidadãos sejam de facto iguais perante a Lei e protegidos pelo Estado de outros cidadãos menos bem intencionados. A aprovação da alteração do artigo 13º, que agora engloba «orientação sexual» como uma das causas pela qual não se pode ser discriminado, foi uma vitória civilizacional importante no caminho para um Portugal mais justo e para uma Portugalidade de tolerância. Existe ainda um longo caminho pela frente para passar da intenção à prática. Acredito que isso poderá ser conseguido desde que o espírito democrático impere.

domingo, outubro 15, 2006

Borga!

Este fim-de-semana foi espectacular! Como chegou há uns dias a Portugal o novo “amigo” do meu amigo R., ontem à noite, sábado, foi altura de o levar a sair à noite em Portugal! A primeira coisa que fizemos foi ir jantar a um restaurante muito catita perdido em Alfama (depois de andarmos às voltas a subir a descer ruas!). Foi simpático. Éramos cinco ao todo: eu, o R.&S. e o outro casal amigo, o P.&R.. Tentamos pôr o S. a comer pratos típicos portugueses ou, pelo menos, lisboetas! Já um pouco atrasados acabamos finalmente de jantar e fomos a alta velocidade para o Alvaláxia jogar Bowling até tarde! Ena, foi mesmo bom! Já não jogava bowling há anos! Claro que o S. ganhou todas as partidas [ele é um jogador profissional, treinado nas melhores escolas londrinas!!]. A seguir fomos dar uma volta ao Bairro Alto e estive pela primeira vez na companhia de uma pessoa (o S.) que compreende o que eu sinto e penso sobre tal sítio! Tinha que ser alemão. Anyway, as palavras que ele escolheu para definir o local são interessantes: «pointless» e «energy drain»! Perfeito! Depois de este acidente de percurso ganhamos juízo e fomos para o Lux. Há quanto tempo também já não ia ao Lux. Foi engraçadíssimo. A certa altura tive um “podre” ao meu lado a dançar bem junto a mim, e tocávamo-nos silenciosa mas docemente nos braços! :o Infelizmente (ou não) nem eu nem ele tivemos a coragem de dar o primeiro passo e fazer a pergunta estúpida inicial para começar uma conversa. Bem, eu não fiquei assim tão triste. Apesar de o rapaz ter um corpo fenomenal e uma cara linda, meio aloirado ainda por cima, desconfio (não sei se mal se bem...) dos “conhecimentos” que se fazem nas saídas nocturnas, em especial em discotecas, e em especial de pessoas que não conhecemos de lado algum! Conhecer pessoas amigas dos nossos amigos seria melhor, mas assim, como ontem, seria quase como um blind date. Raramente dá resultado! Gosto mais de pensar (e sonhar) em encontrar um namorado num local igual a tantos outros, na faculdade por exemplo, onde é mais provável encontrar uma pessoa que pense como nós e nos entenda, e que esteja a atravessar a mesma fase de vida que nós. I’ll keep dreaming...

quarta-feira, outubro 11, 2006

Intimidades...

Hoje li um texto especialmente intenso escrito pela minha amiga Sara no seu blog Cacaoccino que convido aliás todos a lerem, em que na caixa de comentários pedia explicitamente que o mesmo não fosse comentado (talvez dada a profundidade da situação). No entanto revi-me nele, por muito diferentes que sejam as situações, pois são-no de facto.

Pode até parecer um exagero egoísta da minha parte mas sinto que algumas pessoas, devido ao seu percurso de vida pessoal e irrepetível, como o é sempre o percurso de cada ser humano, de um dia para o outro, muitas vezes com alguma crueldade do “destino” (se é que isso existe) ou então, se preferirem, das circunstâncias, vêem-se deparados com o seu Ser na sua forma mais profunda! Antítese? Não, a mais dura das provas pessoais talvez, esta situação em que nos deparamos com o que somos, com o nosso Ser. Perante a ameaça da não-existência, perante o vislumbrar da morte, sentimo-nos compelidos a olhar em redor e questionar tudo. Quem sou eu? Porque existo? Em parte, perante a potencialidade da perda de nós próprios, de um familiar próximo ou de um amigo íntimo, as questões filosóficas da vida e da morte parecem bem pertinentes, e não um devaneio teórico rebuscado de um académico com cátedra em Filosofia... Sinto-o na alma (por razões pessoais que não interessa abordar aqui) quando me sinto compelido a ler textos de autores, tão contrários ao mundo interligado por fibra óptica da sociedade da informação do século XXI em que vivemos, como por exemplo de Aristóteles, Platão, Descartes, Espinosa, Erich Fromm, David Hume, John Stuart Mill, Séneca, Jean-Jacques Rousseau, Homero, etc... São autores que entre outras obras notáveis falam de Ética, essa ciência sobre como poderemos viver melhor connosco mesmos! Pois, e não é isso que procura uma pessoa que - de repente - sente a fragilidade da vida humana e ao mesmo tempo a sua extraordinária riqueza? Perante adversidades insuperáveis e talvez mesmo intransponíveis o ser humano recolhe-se nele próprio e procura a origem de tudo aquilo que é, pois que talvez o conhecimento da origem poderá providenciar o conhecimento do objectivo. Não obstante o esforço inglório, tanto a origem como o objectivo (o famigerado porquê?) são inacessíveis na sua plenitude, e apenas partes imperfeitas e incompletas estão disponíveis à razão humana. Perante este desafio de proporções épicas a própria grandiosidade humana (muitas vezes comparada aos seus feitos técnico-científicos...) passa a medir-se relativamente a esta empresa e não mais seremos tão prepotentemente antropocêntricos na nossa autoavaliação. É uma lição de humildade dura e sofrível esta a de nos depararmos com a não-vida. Cada um segue a sua via, o seu caminho. Ninguém ousará dar recados e sermões perante tais situações pois não há doutores especializados nestas questões, somos todos, ao fim e ao cabo, igualmente versados em assuntos da “morte”. Eu, por mim, continuo a ler, e a escrever... Se há consolo que poderemos ter é que perante a nossa perenidade existe algo nosso que podemos transmitir a um “ser” imortal: a “sociedade humana”! Através da palavra escrita, de obras de arte, da nossa influência no molde desta mesma sociedade podemos aspirar à imortalidade, ainda que indirectamente... Afinal podemos viver para sempre através da sociedade, da “nossa” sociedade, que tem algo só nosso!

«Muitas são as coisas espantosas mas nada é mais espantoso que o homem.»
Sófocles, Antígona

domingo, outubro 01, 2006

Árabes em análise

Li em tempo recorde um livro/ensaio interessantíssimo intitulado «Considerações Sobre a Desgraça Árabe», escrito pelo eminente autor árabe Samir Kassir, e publicado pela editora Livros Cotovia. É um livro que foi originalmente escrito em francês e depois traduzido para o árabe (e mais tarde para o português também), mas de leitura um pouco difícil por duas razões principais, a primeira porque o autor tem uma forma de escrita e pontuação já de si complicadas (diria mesmo confusas e desorganizadas), e a segunda porque parte do princípio que (todos) os seus leitores são fluentes em história e cultura árabe, o que não é sempre verdade como acontece com o meu caso, pelo que por vezes há certos termos e considerações que ficam um pouco suspensos no vazio. À parte isso o livro vai aumentando de interesse ao longo dos capítulos e os dois últimos são, no meu entender, os mais interessantes de todos.
«Não é fácil ser árabe nos nossos dias. Seja para onde for que nos voltemos, do Golfo ao Oceano, o quadro parece sombrio, e mais ainda se compararmos com outras regiões do mundo, mesmo as mais desprovidas. Contudo, esta “desgraça” nem sempre foi. Para além da idade de ouro da civilização árabo-muculmana, houve um tempo não muito distante em que os árabes, de novo actores da sua história, podiam projectar-se no futuro com optimismo. Como é que se chegou ao marasmo actual? Como é que se conseguiu fazer crer aos árabes que não têm outro futuro para além do que lhes destina um milenarismo mórbido? Como é que se pôde menosprezar uma cultura viva, para comungar no culto da desgraça e da morte? Sem pretender propor uma receita mágica para sair da desgraça, Samir Kassir mostra que é possível fazê-lo sublinhando que nada, e muito menos a sua herança cultural, deverá impedir os árabes de voltarem a ser sujeitos da sua própria história.»
Samir Kassir foi historiador e jornalista, professor no Instituto de Ciências Políticas da Universidade de Saint-Joseph. Era reputado pelos seus editoriais publicados no grande jornal diário de Beirute, An-Nahar. A sua Histoire de Beyrouth (2003) foi saudada como uma obra de referência. Foi assassinado em 2 de Junho de 2005, em Beirute. Tinha então 45 anos.